Mank faz Gary Oldman brilhar em preto e branco

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Um filme em preto e branco de duas horas e meia para contar os bastidores da concepção de outro filme em preto e branco, filmado setenta anos atrás. Quem gostaria de ver esse filme? A resposta pode surpreender, afinal Mank, produzido pela Netflix, é o grande nome do Oscar 2021, liderando as apostas nas categorias em que foi indicado, dentre as quais, por aquelas ironias que somente a Academia é capaz de proporcionar, não está o melhor roteiro, única estatueta que Cidadão Kane levou, em parte pela visão do famoso Orson Welles e em maior parte pela genialidade controversa de Mank, motivo de ser dessa ousada realização da Netflix.

Mank conta a história de Herman Mankiewicz, roteirista de Hollywood, interpretado por Gary Oldman, em sua trajetória não linear que o levou a roteirizar Cidadão Kane, aos trancos e barrancos. Falar de Mank é falar sobre encontrar a beleza na complexidade. Mank não era agradável, mas ainda assim era popular. Bebia, fumava, apostava, mantinha paixões platônicas, e ainda assim contava com o amor inabalável da sua esposa. Se afundava em dívidas e conseguia manter um bom padrão de vida. Flertava com o socialismo e comunismo e era recebido de braços abertos entre os capitalistas. Poucos atores poderiam ser essa pessoa. Nenhum melhor que Gary Oldman.

Oldman é um daqueles atores que mais parecem um camaleão. Foi o Comissário Gordon definitivo e trouxe Churchill de volta à vida. Então não estranha nem um pouco que se não valesse por mais nada, o filme valeria por ele. Mas o filme vale, e talvez por diferentes razões para diferentes pessoas. Chama a atenção uma precisa direção de arte, que consegue em tempo razoável ultrapassar a desconfiança que se teria ao ver um filme em preto e branco no conforto tecnológico do streaming. Vale por resgatar aquele sentimento de puratanismo provocado por filmes como Casablanca, no qual tudo que existe é o roteiro e a atuação, e esses são os únicos padrões que vão determinar a qualidade da película. Vale por atuações convincentes, em especial de Amanda Seyfried, que consegue contrapor com suavidade a pesada atuação de Oldman, em uma dança de atuação que lembra Murray e Scarlett Johansson em Encontros e Desencontros. Vale por entregar veracidade na fábrica de ilusões de Hollywood. Simplesmente vale.

Mank não é um filme fácil, muitas vezes arrastado, e sua ausência de linearidade acrescenta ainda mais obstáculos para sua apreciação, especialmente para uma geração acostumada à entrega rápida. Mas David Fincher sabia perfeitamente como queria conduzir a história, emulando Welles em seu próprio Cidadão Kane moderno. E assim pautou a narrativa da mesma forma que Kane, através de flashbacks, que setenta anos antes foram revolucionários como ferramenta de storytelling. Se Kane questionava a imprensa e sua isenção em meio a segunda grande guerra (e quem pensa que fake news é novidade, com o perdão do trocadilho), nada melhor que Mank questionar o processo de criação, a narrativa, a exposição e até mesmo o mecenato – chegando à ousada afirmação que Hollywood recriou as práticas de Goebbels. Mais atual, impossível.

Mank encanta por sua crueza, e apaixona pela sua dura sinceridade. A tecnologia que se revolucionou ao passar desses setenta anos certamente não reflete a estática condição humana, escancarada no filme. E a premiada atuação de Oldman projeta Mank para ser mais do que uma sombra de Kane, valendo para muitos como um prequel ou um teaser, e renovando o interesse nessa imortal obra. Agora, se a obra de Fincher conseguirá se projetar no tempo e no imaginário popular, somente daqui a setenta anos para se descobrir a resposta, independente de qual for o julgamento da Academia e seus caprichos.