Sonho, morte, desejo, desespero, delírio, destruição e destino. Grandes forças que movem o ser humano reduzidas a representações antropomórficas. Não se trata de uma aula de psicologia e sim os Perpétuos, personagens centrais da obra maior de Neil Gailman, Sandman, que estreou sua primeira temporada de 10 episódios na Netflix com as bençãos – e olhar atento do próprio autor. Esse ponto ganha relevância ao observar que, durante quase quatro décadas, dezenas foram as negativas em adaptar seus quadrinhos para outros formatos, deixando ofertas milionárias dos estúdios para trás até que sua visão fosse honrada. E valeu a pena esperar.
Uma leva inaugural de dez capítulos adapta a primeira parte de sua obra, Prelúdios Noturnos, e vai um pouco além, com o desafio de agradar fãs e encantar neófitos da mesma forma. Assim como a Morte, cedo ou tarde, estende suas asas a todos, Sandman só sairia do papel para ser universal, afinal o tema central também o é. No que séries de fantasias se perdem em mundos de regras complexas que acabam por sequestrar o enredo, Sandman brilha ao abrir o palco para seu mote único: o ser humano, sua complexidade e sua beleza, que encerram em igual proporção os desafios e soluções desse primeiro arco.
Tom Sturges brilha em seu primeiro grande papel, encarnando o senhor do sonhar, aprisionado pela mesquinhez humana por quase um século e que precisa reunir seus artefatos para retomar sua força e reconstruir seu reino. Essa é a narrativa principal, e as histórias se desenrolam dentro de outras histórias, aparentemente desconexas, que fazem sentido pelo simples fato de entender que os 7 irmãos perpétuos existem porque existem os humanos, e qualquer história humana, acaba, em sua quintessência, sendo uma história sobre eles. E não se engane o espectador desavisado: uma simples narrativa desconexa vai fazer muito mais sentido para se entender o todo do que o esperado. Típico Gailman.
Honrando a obra original quase meio século após escrita, a série toma algumas liberdades ao alterar gêneros e etnias de alguns personagens, revelando,, sem surpresa, alguma que nenhum desses fatores era importante para a história a ser compartilhada: Sandman já era diverso, inclusivo e neutro décadas atrás sem fazer qualquer alarde. Não era necessário. E ao tomar essas liberdades, a escalação de elenco dribla alguns pequenos desafios impostos pelo fato da obra de Gailman ser tão definitiva na fantasia moderna, indo muito além da DC Comics: alguns de seus personagens já haviam ganhado interpretações relevantes e queridas do público, como seu Lúcifer ou mesmo seu Constantine, esse com duas versões de respeito. E agora novas interpretações passaram a ocupar o imaginário popular, como a sempre excelente Gwendoline Christie e sua deslumbrante Lúcifer, cínica, poderosa e capaz de roubar toda cena da qual participa, sendo responsável por uma das mais marcantes passagens da temporada, que é seu duelo com Morpheus.
Extremamente diverso e não linear, Sandman encanta com um ritmo intimista em uma linguagem narrativa que oscila entre a grandiloquência das grandes produções com momentos teatrais e passagens aparentemente banais, tal qual concebido e transposto para as telas com perfeição, e apresentando personagens profundos e envolventes consegue superar as grandes expectativas criadas e se tornar uma das melhores produções do ano, agradando fãs e ilustres desconhecidos de igual maneira.