Euphoria não é uma série. É um murro no estômago em forma de seriado, a começar pelo nome, talvez mais bipolar do que irônico. Bem verdade que a premiação de Zendaya como mais nova atriz a ganhar um Emmy gerou curiosidade e atração do grande público, sendo que até então era mais vista por um nicho mais específico. E que bom que agora passou a ser visto por uma audiência maior.
A série conta a história de Rue, interpretada por Zendaya, como uma menina que devido à problemas psicológicos, passou grande parte da sua infância sendo medicada com drogas fortes, e acaba tendo uma overdose no colegial, sendo esse o chute inicial da primeira temporada. Logo, fica claro que não é a história de Rue, mas sim de todos ao seu redor, do ecossistema estudantil, do atleta ao nerd, passando por diversos estereótipos clássicos e até aos menos óbvios, nesse caso uma fetichista e um transsexual. É nesse momento que o espectador percebe que está diante de algo mais provocador do que 13 Reasons, até porque por mais trágico que seja o suicídio, às vezes a continuidade da vida traumatizada pode ser algo muito complicado que o final precoce dela.
Como fio narrativo, Rue cumpre sua função e serve para conectar todos os elementos, vez que cada episódio começa com uma breve narrativa sobre a infância de algum dos personagens, um tipo de escolha narrativa já vista em séries como Roma e que funciona muito bem quando se pretende fugir da linearidade narrativa. Essa é uma das muitas escolhas acertadas de Sam Levinson, o grande nome por trás do projeto. Criador, roteirista, diretor e produtos, Sam foi um ator medíocre que claramente tem tudo para brilhar por trás das câmeras, tal qual Jordan Peele. Cada toque de cena mostra sua habilidade, explorando tomadas com um certo lirismo quando cabível ou sendo de uma crueza assustadora em outras cenas. Tudo muito bem produzido, com uma trilha sonora caótica que reflete o exterior (e interior) de cada personagem, como mais um ator em cena.
Se 13 Reasons é focado, quase monotemático e silencioso na maioria das suas dores, Euphoria é incoerente e barulhento. Exatamente como seus personagens. Abusos de drogas, álcool, remédios, a utilização do sexo como auto-alienação, tudo parece simultaneamente desprovido de significado e mergulhado nele ao mesmo tempo. Os estereótipos são subvertidos quase tão rapidamente quanto apresentados: o traficante de bom coração, a transsexual como mulher poderosa e sedutora, o titã da indústria vulnerável, a menina obesa como dominadora e o atleta modelo como psicopata. É uma cacofonia narrativa que poderia se perder, mas que de alguma faz sentido. Ordem nascida do caos. Nunca foi tão explicado o conceito de se apaixonar por uma pessoa e não por um gênero, e nunca a adolescência foi tão dolorida.
A riqueza das discussões, difíceis e atuais, empodera a série que briga de igual para igual com qualquer outra série crítica e atual de destaque, seja 13 Reasons, seja Sex Education, com destaque para o time de atores. Da improvável Hunter Schafer, atriz transexual de 21 anos que mais parece uma veterana, passando pela Zendaya, todos atores estão muito bem, ainda que pareça ser uma certa incongruência o prêmio dado para esta, vez que soa uma versão de sí mesma em seus outros papéis, seja como a Mary Jane de Tom Holland, seja como Anne Wheeler de o Rei do Show. Mais dark, sem dúvida, mas nada tão original, diferente de todos os demais, como a própria Hunter, ou Jacob Elordi, que de galã da Barraca do Beijo, se transforma em um psicopata americano que deixaria Patrick Bateman, de Bale, enciumado ou excitado. Talvez ambos.
Seja pela relevância das discussões, pela técnica narrativa, por uma produção de encher os olhos ou por atuações incômodas e espetaculares, Euphoria é um achado e merece ser visto, apreciado e discutido, por mais que embrulhe o estômago, dificilmente sendo possível passar desapercebido.