Há crimes que não prescrevem. E refazer Vale Tudo, um dos pilares da teledramaturgia brasileira, sem entender sua alma, talvez seja o maior deles.
O remake que terminou nesta sexta (17) não apenas decepcionou: ele profanou o que restava de um símbolo. Ao final de 173 capítulos, a suposta catarse virou constrangimento nacional. Odete Roitman sobreviveu, mas apenas para testemunhar o assassinato da boa dramaturgia.
Uma reviravolta sem alma
A cena final, que deveria ecoar nos anais da TV, escorregou na própria ambição. Marco Aurélio acredita ter matado Odete, mas Manuela Dias resolve subverter a lógica e “ressuscitar” a vilã graças a um milagre conveniente de Freitas. Sem explicação, sem propósito, sem sentido. Um anticlímax digno de paródia. A autora parece ter confundido reviravolta com aleatoriedade, como se o absurdo bastasse para impressionar. O público, que esperou meses por uma revelação minimamente coerente, respondeu com o único sentimento possível: indignação.
Mas reduzir o fracasso de Vale Tudo 2025 ao último capítulo seria injusto. O problema é estrutural, ideológico e artístico. A novela original de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères era uma reflexão sobre a moral brasileira, um espelho cruel do país onde vale tudo para subir na vida. Já a versão de 2025 é um espelho quebrado, sem reflexão, sem identidade e sem coragem. O remake tentou atualizar debates, mas esqueceu de ter algo a dizer. O resultado é um Frankenstein televisivo, uma colagem de temas de rede social, militâncias rasas e tramas que nascem mortas.
A novela que morreu tentando reviver
Em 1988, a novela usava o melodrama como ferramenta de crítica. Em 2025, o melodrama virou ruído. A trama que opunha Raquel e Maria de Fátima, mãe e filha divididas pela ética, foi diluída até perder a espinha dorsal. Raquel, interpretada com vigor por Taís Araújo, acabou rebaixada a figurante da própria história. A mulher símbolo da integridade virou mera coadjuvante em uma narrativa que parece ter vergonha da virtude. A frase imortal “não vale tudo para vencer” foi substituída por um silêncio covarde. Quando a honestidade perde até o direito à palavra, é sinal de que o remake não entendeu o próprio título.
Nem mesmo o resgate de Odete Roitman conseguiu salvar o desastre. Débora Bloch brilhou, mas sozinha. Sua vilã era o último elo entre o clássico e a ruína. E, ironicamente, foi a personagem que simbolizou o requinte da TV Globo quem acabou entregue a um roteiro amador. A decisão de trazê-la de volta à vida não foi ousadia, foi desespero narrativo. Uma tentativa de gerar “buzz” às custas da coerência. E quando uma história precisa ressuscitar seus mortos para causar impacto, é porque já morreu há muito tempo.
Vale Tudo 2025 não é apenas uma má novela. É um sintoma. Um sinal de que a Globo, em seu aniversário de 60 anos, perdeu o senso de proporção, de legado e de autocrítica. O remake se disfarça de homenagem, mas é autossabotagem: celebra o passado para provar que o presente já não tem fôlego criativo. A emissora que um dia exportou dramaturgia agora importa formatos e terceiriza sua alma.
Odete Roitman sobreviveu, sim. Mas foi para assistir, impassível, ao enterro de uma era em que a televisão brasileira ainda acreditava que contar boas histórias valia alguma coisa.
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