Dr. Sono prova que o terror de qualidade não morreu

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O Iluminado se firmou como grande obra de terror e suspense ao longo de quase meio século, quando foi adaptado do livro do mestre do terror Stephen King pelas mãos do eterno Kubrick e teve em Jack Nicholson sua grande estrela. Então qual não a surpresa do grande público quando o autor publicou a continuação do livro em 2013, trazendo Danny Torrance crescido e lidando com as consequências de tudo que aconteceu no Overlook hotel? Eis Doutor Sono, adaptado para as grandes telas em 2019, trazendo Ewan McGregor como Danny crescido.

Em nenhum momento essa continuação se mostra um caça-níquel, justamente por ter vindo diretamente da fonte original: claramente King ficou com o Overlook e seus personagens trabalhando no fundo da memória, tal qual George Miller, que ficou com Mad Max fermentando por décadas até trazer ao mundo uma grande obra. Foi justamente o que aconteceu com King e o Dr. Sono.

Seguindo o script das continuações, Dr. Sono cuida da ampliação do universo de Iluminado, e apresenta ao expectador um mundo de iluminados, nem todos eles bons; muito pelo contrário: o Verdadeiro Nó é um grupo de iluminados que se alimenta de outros iluminados, como verdadeiros vampiros. Enquanto isso, o filme resgata Danny, agora Dan, vivendo uma vida errática típica de alguém traumatizado, herdando os pecados do pai, incluindo o vício e a violência. E de outro lado, é apresentada a menina Abra, uma iluminada de potencial arrebatador, com uma família amorosa que não sabe muito bem como lidar com a situação.

Apresentado o tabuleiro, o filme resgata os acontecimentos imediatamente posteriores ao Overlook, em um momento de absoluta superação do casting, que conseguiu achar um pequeno Danny, sua mãe e o Iluminado Dick quase idênticos aos atores originais de quase quarenta anos atrás. Danny continua com pesadelos, afetado pelo Overlook, até que o seu mentor Dick ensina como prender os “fantasmas” do Overlook.

Esse ensinamento permite que Danny siga sua vida, mas não sem exibir as sequelas e traumas do ocorrido. Isso até se firmar como enfermeiro em uma casa de pacientes terminais, quando junto com um gato, consegue estar presente no momento final dos pacientes, o que lhe rende o apelido que batiza a história. E sua vida parece entrar nos eixos, até que a menina Abra acaba fazendo contato com ele, e ambos sentem os ecos das ações do Nó, encaminhando os acontecimentos para um inescapável encontro.

Ao longo das três horas de filme, dividido em capítulos como o autor gosta de fazer com suas narrativas, o roteiro segue fluído e o tempo de tela é bem utilizado para desenvolvimento dos personagens, todos muito bem interpretados por seus atores, com um merecido destaque para a menina Kyielegh Curran, que aos 14 anos faz seu segundo filme, após ter sido descoberta na Broadway. Ela consegue mostrar diversas facetas, segurando interpretações de atores com muito mais vivência como McGregor e Ferguson, excelentes nos papéis.

Tecnicamente, o filme consegue resgatar a atmosfera do original, sem pecar com o ritmo modorrento do filme de 1980. Sons, filtros, fotografia: tudo resgata o Overlook indiretamente, quando o mesmo não é trazido de volta de forma explícita. Essa aclimatação faz com que a transição de um filme para o outro aconteça de forma gradual e harmônica, sem parecer forçado (como o prequel de Star Wars, por exemplo, ou Poderoso Chefão 3).

A carga de tensão vai se acumulado gradativamente a ponto de quase exibir que o expectador faça uma pausa para um banheiro, pipoca ou água, meras justificativas para se recompor. E tudo isso com uma narrativa que sempre que pode inverte paradigmas do cinema, deixando o público boquiaberto com os acontecimentos, sem contudo precisar de valer de viradas sem sentido. Tudo está bem construído e amarrado.

Ninguém consegue incorporar elementos de horror ao cotidiano da forma que Stephen King faz, e Dr. Sono uma é exuberante prova disso, permitindo interpretações que vão da ficção às doutrinas espiritualistas com uma fluidez que impressiona: o mundo de horror de King tem os pés, ou melhor, os dentes fincados na realidade e suas abstrações podem ser utilizadas em situações corriqueiras sem muito esforço. Se o final de iluminado, fechado em si mesmo, deixava a dúvida do destino do pequeno Danny, Dr. Sono responde com exatidão e justiça o único final possível, tanto para a família Torrance quanto para o temido hotel Overlook, fechando com terrível maestria os arcos narrativos iniciados na gélida paisagem do resort de luxo.